ESTAVA LÁ O CORPO ESTENDIDO NO CHÃO
Depois de dez horas de carro sob forte e insistente aguaceiro, saído de São José do Rio Preto eu chegava ao limite dos estados de Goiás e do Distrito Federal. E, então, a coisa de cinco quilômetros de entrar no território de Brasília, lá estava no asfalto encharcado da pista de rolamento o corpo estendido no chão.
Passei a menos de metro e meio daquele homem ensanguentado e inerte coberto com um lençol branco, em sinal de respeito a sua morte. Ele estava, a cerca de quatro ou cinco metros do seu carro de porte médio com a frente demolida, estendido no meio da faixa da esquerda de uma rodovia que tem duas mãos em sentido único.
No lado de lá, onde fica a estrada que vem no contra-fluxo, também com duas mãos rumo a um só destino, estava um caminhão emborcado. Não vi seu motorista. Nem sei se estava vivo ou morto.
Segui em frente, em marcha lenta. Isso me deu tempo de ver dezenas de automóveis parando ao redor do caminhão e do carro da vítima tombados e semidestruídos numa valeta que separa a estrada que vai da estrada que vem. Pensei que eram curiosos. Cheguei a imaginar até que eram viajores solidários que se prontificavam a prestar socorro aos acidentados. Quê nada! Não, não eram. Eram ladrões. Saqueadores.
Iam e vinham - homens, mulheres, jovens e até crianças - pela valeta adentro, acima e abaixo, carregando e ensacando o que podiam de tudo quando havia se esparramado da carga do caminhão e do que havia nas malas do automóvel do morto. A polícia ainda não havia chegado.
Os larápios passavam a poucos centímetros do corpo respeitosamente mal tapado pelo piedoso lençol. Chovia. Acelerei e saí dali o mais rápido possível. Queria chegar logo em casa. E muito antes disso, queria me afastar daquela gente.
E fugi daqueles farrapos desumanos que, agora tenho certeza, sabem muito bem porque não se importam quando sabem que os políticos que eles elegem para representá-los e até para governá-los são canalhas, ladrões, mensaleiros, oportunistas e gatunos.
Cada um daqueles que saltavam sobre o corpo daquele pobre homem, com a alegria de quem se dá bem com a desdita dos outros, deve sonhar com o dia em que seu filho há de ser, um chefe de quadrilha ou apenas um honorável corrupto. Deve esperar que sua filha seja um dia uma exitosa primeira-dama de um governo paralelo.
Cada um daqueles rapinantes deve rezar para todos os santos e diabos que os carregam, para que ele próprio chegue um dia na vida a ser como os governantes que tanto admira: um respeitado falastrão pernicioso, desses que vilipendiam e debocham da lei; desses rufiões desta nação que, quando dizem que não têm dinheiro, fazem vaquinhas virtuais, para estarem de bem e em dia com a Justiça.
Sei agora, depois do banho reparador de uma cansativa e cuidadosa viagem de carro, que muito mais chocante e terrível do que aquele corpo estendido no chão, foi ver que o espírito de cidadania dos brasileiros e já não têm mais onde cair morto. Os saqueadores da nação estão roubando até os referenciais humanos da nossa gente.